Eutanásia... ou liberdade para escolher?
Trata-se somente disto: da liberdade, de ter opção, de poder escolher.
A minha mãe não teve. O meu sogro teve, porque a escolha dele era a "autorizada".
O meu sogro viu-se confrontado com uma doença terrível, que lhe dava dores e o impossibilitava de ter uma vida "normal", mas lutou. Lutou sempre.
Lutou quando se viu confrontado com uma quimio dura que o prendia à cama dias seguidos.
Lutou quando a doença o obrigou a ter sempre uma "botija" a acompanhá-lo.
Lutou quando esta nora tonta não o percebeu entre os fôlegos da falta de ar e refilou com a sua "burrice".
Lutou sem nunca desistir de viver, até o corpo desistir dele.
A minha mãe viu-se confrontada também com uma doença terrível. E lutou. Lutou por ela e lutou por mim, pelos filhos.
Lutou à medida que a doença lhe roubava a dignidade e transformava aquela mulher linda, corajosa e brilhante numa lembrança do que foi.
E eu vi-a a desvanecer-se, a perder o brilho, mas a lutar... A lutar por se manter autónoma, por não dar trabalho, por não dar preocupação.
Eu vi-a. Mas não a vi. Não a vi realmente, porque como todos os que amam, eu não queria ver. Não queria aceitar que não haveria retorno, não queria aceitar que ela estava a morrer aos poucos e não havia volta a dar. Eu não queria ver.
E por isso não lhe permiti dizer-me que estava cansada da luta; que estava saturada de se sentir um "incómodo" para nós; que estava farta da inversão de papéis que a doença trouxe, roubando-lhe a autonomia e tornando-a, de certo modo, "filha dos filhos dela".
Mas eu sentia-o, sentia a sua tristeza e cansaço, por mais que o meu coração o negasse e esse é o arrependimento que carrego para sempre comigo: Não a ter ouvido, não a ter deixado contar-me que estava cansada de lutar, não a ter deixado falar-me do que queria e do que aí vinha.
Fiquei a seu lado e ficaria por outros tantos mais anos se tal fosse possível, negando a inevitabilidade da morte que apertava o cerco. Choraria e imploraria aos médicos novamente pela vida dela, sem pensar se lhe prolongava a vida ou o sofrimento, pois na altura não teria conseguido fazer diferente.
Mas a verdade é que essa foi uma opção minha, mais ou menos consciente foi minha.
Já ela não teve outra escolha que não aceitar o declínio, a perda, tudo por aquilo que passou. E olhando para trás, lembro-me do médico excelente, como profissional e humano, que a acompanhou e relembro como ele estava preocupado com a reação dela quando acordasse da cirurgia, porque sabia os medos dela... Olhando para trás, percebo que ela lhos confiou: o medo da dependência e de perder a capacidade cognitiva e a faculdade de pensar por ela.
Ele falou-nos neles, mas nós não ouvimos. Ele contou-nos a preocupação com a qualidade de vida dela e as decisões médicas que teve de tomar, pesando essa qualidade e os receios dela. Eu não ouvi ou não quis perceber, porque isso implicaria perceber que a luz lá no fundo do túnel não estava a aumentar, mas a apagar-se...
A realidade, é que ela nunca perdeu a capacidade cognitiva, mas não teve escolha. Não porque não lhe permiti falar-me, contar-me os seus medos (porque eu própria não queria enfrentar os meus), mas porque a vida sendo dela, não era dela para decidir.
Ela nunca teve opção de decidir se queria lutar mais. Lutou porque não teve remédio.
E um dia, não aguentando ver mais o sofrimento dela, a minha cegueira acabou e disse-lhe adeus na esperança que me ouvisse. Ela não me respondeu, nem conversámos sobre o assunto, porque era tarde demais para isso... Simplesmente, foi.
Hoje um conjunto de pessoas, bem acomodadas nas suas cadeiras, decidiram que não há opção para ninguém: mantem-se a ditadura de viver e lutar até se perder tudo. Decidiram que a vida das pessoas é de cada uma delas, mas na realidade não é.
Espero que não tenham de abir os olhos e superar medos tarde demais... No entretanto, não há opção para ninguém.